Gaia fala: para regenerar é preciso escutar

Metáforas ecológicas para cultivar futuros regenerativos

por Natalí Garcia

Vivemos um tempo em que as crises ecológicas e sociais revelam uma inabilidade do ser humano moderno em agir de acordo com a inteligência da vida, demandando um repensar radical das maneiras como nos relacionamos com o mundo. Diante disso, acompanhamos uma reemergência de um modo de pensar profundamente conectado com a Teia Viva da existência. Essa visão de mundo propõe uma realidade composta por processos dinâmicos, interdependentes e continuamente emergentes, rompendo com a visão cartesiana que separa mente e matéria, sujeito e objeto. Essa visão se alinha com perspectivas ancestrais que vêem o mundo como vivo e dotado de alma, assim como acreditam que há alma nos demais seres vivos – para além dos humanos, tal como nos ensina Ailton Krenak ao afirmar que as florestas são também “gente” com quem interagimos, e não meros “recursos naturais”.

Sob essa perspectiva, a realidade é entendida como um contínuo fluxo de experiências e eventos, onde cada instante é único, singular. Essa visão encontra profunda ressonância com a “linguagem de Gaia”, noção apresentada por Fabio Scarano que, inspirado pela hipótese Gaia de James Lovelock e Lynn Margulis, propõe a Terra como um organismo vivo e autopoiético, que se mantém através de processos simbólicos e comunicativos entre si, seus seres e elementos.

A linguagem de Gaia, portanto, pode ser compreendida como um processo contínuo – físico e simbólico – que mantém a vitalidade dos ecossistemas através de interações comunicativas. Cada acontecimento ecológico, como o florescer das plantas ou as migrações animais, carrega consigo mensagens de Gaia, um diálogo contínuo entre (e com) os seres que habitam o planeta.

As metáforas ecológicas, nesse contexto, surgem como ferramentas potenciais para acessar e compreender a linguagem profunda de Gaia.

Elas nos oferecem um modo intuitivo e criativo de perceber as relações e processos ecológicos, facilitando a conexão emocional e simbólica com o mundo natural. Metáforas como sementes, raízes, ciclos de vida e regeneração permitem-nos sentir e imaginar a interconexão de tudo o que existe, promovendo uma transformação subjetiva profunda.

Scarano propõe o conceito de antecipação regenerativa como um processo que articula memória, atenção e imaginação, estabelecendo um diálogo entre os passados múltiplos – inclusive aqueles por vezes apagados, esquecidos ou dormentes –, o presente encarnado (e, por isso, atento) e a imaginação voltada ao porvir, capaz de descolonizar e ampliar os horizontes do possível. Essa forma de antecipação não projeta planos sobre o mundo, mas escuta sua potência de vir-a-ser, enraizando-se nas relações simbólicas e ecológicas que tecemos no presente. No entrelaçamento entre o que foi, o que é e o que pode emergir (entre a memória viva dos sistemas, a presença atenta e a imaginação criativa), futuros regenerativos podem despontar. Assim, antecipar torna-se um gesto poético e ontológico: um modo de estar no mundo em coautoria com a vida.

Neste cenário emerge o Tarot Regenerativo como uma abordagem projetual e intuitiva que incorpora essa visão processual e metafórica. Cada carta desse tarot é concebida como uma metáfora ecológica viva, que convida os participantes a dialogarem simbolicamente com histórias (próprias e do lugar) e os processos regenerativos de Gaia. O tarot torna-se assim uma ferramenta de antecipação regenerativa, estimulando uma visão criativa e imaginativa dos futuros sustentáveis.

Essa abordagem dialoga diretamente com a noção junguiana de intuição. Carl Jung compreende a intuição como uma das funções psicológicas fundamentais que nos conecta com o inconsciente coletivo, um plano ancestral e subjacente de imagens e arquétipos universais. Para Henri Bergson a intuição é compreendida como uma forma de conhecimento imediato, profundo e vivencial, que nos permite penetrar na essência das coisas e no fluxo contínuo da vida. Através dessa intuição, conseguimos acessar o tempo profundo, a “duração” proposta por Bergson, onde passado, presente e futuro se interpenetram continuamente. Neste contexto, a antecipação regenerativa pode tornar-se um modo de acessar a memória ontológica, um espaço simbólico onde as potencialidades futuras já vibram latentes no presente.

Assim, o Tarot Regenerativo opera como um dispositivo que facilita essa intuição profunda. Ao interagir com as cartas, os participantes são convidados a acessar e mobilizar essas imagens arquetípicas, criando espaços de possibilidade e transformação subjetiva e coletiva.

A imaginação criativa desempenha um papel central nesse processo, uma vez que ela permite não apenas a visualização de futuros desejáveis, mas também a criação ativa desses futuros no presente. Imaginar criativamente é escutar atentamente os sinais do agora e do potencial, e permitir que novos mundos surjam, mesmo que simbolicamente.

Dessa forma, a antecipação regenerativa se configura como uma prática poética e sensível de criação em diálogo com a vida. Ela nos convida a cultivar uma atitude aberta e receptiva ao inesperado, reconhecendo que o futuro emerge continuamente através das relações que cultivamos no presente. Nesse contexto, antecipar futuros regenerativos é também um gesto de sintonizar-se com o que Jung chamou de inconsciente coletivo – um campo arquetípico que estrutura a psique humana em conexão com a totalidade da vida. James Hillman, ao aprofundar essa perspectiva, resgatou a noção de alma do mundo (anima mundi), indicando que as imagens e símbolos não são meras expressões internas, mas manifestações da própria vida buscando se conhecer e se transformar.

Por fim, a hipótese de que Gaia se comunica com seus seres – e se regenera – nos convida a compreender a regeneração não apenas em um plano físico, mas como um movimento relacional e simbólico, sustentado por uma escuta sensível e poética. Para isso, é preciso rever o mundo com outros olhos, como nos lembra James Hillman: “Respeitar é simplesmente olhar de novo, respectare, esse segundo olhar com o olho do coração.” (Hillman, 2010, p. 109). Esse gesto de rever Gaia com o coração funda uma nova linguagem, por meio da qual podemos restabelecer nossa participação nos processos regenerativos da vida.

O Tarot Regenerativo surge como prática desse respeito profundo: uma forma de reconectar os laços simbólicos entre o humano e o mais-que-humano, entre a alma e os ciclos da Terra. Como sintetizado a partir do pensamento de James Hillman, a alma não é algo que possuímos, mas algo que fazemos: fazemos alma ao fazer sentido do mundo. Nesse sentido, antecipar regenerativamente é, antes de tudo, reaprender a ver (e respeitar) o mundo como presença viva, onde cada imagem é um chamado e cada gesto simbólico pode tornar-se semente de futuros.

O livro Tarot Regenerativo, que vem acompanhado de 22 cartas coloridas, já está em pré-venda e é direcionado a pessoas e grupos interessados em autoconhecimento e culturas regenerativas. É uma ferramenta útil para profissionais de design, inovação, sustentabilidade, terapeutas e educadores que desejam ir além das abordagens tradicionais e integrar teoria, prática e experiência sensível. O Tarot Regenerativo pode ser usado individualmente ou em grupos para estimular reflexão, conversas significativas e imaginação criativa e estratégica.

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>>> assista a entrevista com a Natalí Garcia no Youtube >>> Cultivando Futuros Regenerativos

Referências

DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tr. Luiz Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 1999.

GARCIA, Natalí Abreu; FRANZATO, Carlo . Metáforas ecológicas como caminhos de especulação e antecipação regenerativa. In: ANAIS DO XIII CONGRESSO INTERNACIONAL DO PROGRAMA DE PóS-GRADUAçãO INTERUNIDADES EM ESTéTICA E HISTóRIA DA ARTE, 2024, São Paulo. Anais eletrônicos…, Galoá, 2024.

HILLMAN, J. O Pensamento do Coração e a Alma do Mundo. Campinas, Verus Editora, 2010.

JUNG, C. G. A natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 1971.

SCARANO, F. R.; AGUIAR, A.C.F., HOLZ, V. L.; MACEDO, A. L. de; LOMBRADI, A.; SANTOS, L. S. dos; KOCH, F. Plant-life vocabulary as metaphors for post-normal planetary challenges. Theorethical and Experimantal Plant Physiology, 13 maio 2024.

SCARANO, F. R.; A Linguagem de Gaia: Ensaio. Cadernos SELVAGEM. Publicação digital da Dantes Editora. Biosfera, 2020.

SCARANO, F. R. Diálogos Regenerativos para Futuros Sustentáveis. Rio de Janeiro, Bambual Editora, 2025.

SCARANO, F. R. ¿Y si…? In: Achim M, Gandlgruber B, Richard A (eds) Ensayos en las Orillas del Tiempo. Universidad Autónoma Metropolitana, Ciudad de México, 2024b.